DOUGLAS MENEZES
Sou um provinciano escritor do Cabo, sem o talento nem a fama de Fernando Pessoa. Escrevinho palavras pra me satisfazer um pouco e dizer pros amigos que estou vivo. O rio da aldeia do poeta português ganhou o mundo sem precisar ser grande, muito menos encontrar o mar. Porque Pessoa, maior que todos os rios do mundo, levou seu pedaço de água sentimental a todos os rincões da Terra, ofuscando o Tejo e sua grandeza.
Pois eu também tenho o meu rio, de sonhos do passado, de vivências mediocres, comuns, de um bucolismo mal arranjado pela memória que se vai aos poucos. Do meu quintal via o Pirapama sereno nos verões, quando ainda os canaviais chegavam a bater nas cozinhas das casas cabenses. No inverno, muitas vezes, enfurecido, arrebentando o que aparecia pela frente, metendo medo, causando prejuízos e tragédias, como querendo dominar a cidade e tomar suas ladeiras.
No mais era o meu rio doce, num tempo de peixes visíveis nas águas claras, de um leve amarelo cristalino, sem as marcas maldosas do homem. Vinha descendo de Vitória e enchia de melodia o seu passar sobre as pedras, embalando o quase adormecer das meninas ao banho das tardes quentes desse pedaço de Pernambuco. Era o rio da minha aldeia. Não sei se encontrava o mar, mas a mim bastava a contemplação, o mirar das estrelas, do sol e da lua no espelho das suas águas.
Tempo passa. Homem mexendo nele. Homem o castigando, mudando seu rumo, tirando a mata de suas margens, expulsando seu cheiro natural, matando os viventes que nele moravam, destruindo seu lirismo de açúcar, cercado que era por engenhos e usinas. O doce virou um paladar amargo. Esses verdes não são algas marinhas. O Pirapama causa náuseas. Nem o azul desbotado é o céu se espelhando no mar. Seu cheiro hoje, não é o da minha infância. E minha aldeia cresceu tanto, esqucendo lentamente que possui um rio tão chamado de seu nos anos que se foram.
Mas quem recorda revive. Vive de novo com quase a mesma intensidade. E repasso a fala de Tristão de Atayde, na voz de Sebastião Nery: “O passado não é o que passou, é o que ficou do que passou”. E o Pirapama vai viver em mim, enquanto em viver, poluído, malcheiroso, desencantado, triste e quase sem vida, sem nome famoso, talvez esquecido daqui a pouco, até mesmo sem água, virando riacho, margeado por cactus e caatinga e urubus agourentos. Assim mesmo, até que a morte nos separe, sempre será o meu rio. E plagiando Pessoa confirmo já com a voz ufanista e com emoção: O Pirapama, mesmo sem ser, é o maior rio do mundo, porque é o rio da minha cidade ou aldeia. 04 -11-15 Douglas Menezes